terça-feira, 6 de março de 2007

O pequeno mundo de São Carlos - I: A Velha



No outro dia tive mais uma matinee em São Carlos. Fui assistir à minha segunda récita do Il Barbiere di Siviglia ('tava fraquito!). Como sempre dirigi-me ao meu lugar ao lado do qual já se encontrava a minha companheira de camarote: uma senhora de perto de 80 anos, com o cabelo já todo branco, mas rija e tagarela até mais não.
Queria partilhar esta situação porque foi das mais caricatas da minha vida. Ora, como estava a dizer, sentei-me no meu lugar, cumprimentei a senhora como é costume e pús-me a ler o livrito que se compra à entrada do Teatro e onde estão as falas e os textos sobre a representação desse dia. A Velha (para não variar!) mete conversa. Eu até a acho simpática e, coitada, até temos conversado. Contudo, desta vez foi diferente. A mulher devia estar com os azeites, um copo a mais, ou, se calhar, tinha dormido com os pés de fora nessa noite. O que é certo é que, nesse dia, deu-lhe para comentar e criticar as vestimentas dos convivas dos camarotes em frente. Divertiu-se a bradar que "devia ser proibido vestir-se daquela forma" e que "a ópera não é para qualquer copeira" até, finalmente (e graças a Deus) as luzes se apagarem e o raio do maestro ("em mangas de camisa" segundo a velha - sim, porque até o vestuário do pobre homem ela cometou!) entrar no fosso da orquestra e iniciar bendito primeiro acto. Desde que cheguei até que os músicos começaram a tocar e os cantores a "berrar" a velha discorreu alarvidades acerca do número de apartamentos que tem em Lisboa e Vila Real de Santo António e do sem número de viagens que faz (porque o genro é piloto-aviador da TAP) à Amazónia e a Las Vegas. O que é certo é que a Velha, cada vez que lá vou, faz questão de dizer que, este ano, faz 80 anos e que acha que, por isso mesmo, tem o direito de dizer seja o que for! Chegou ao cúmulo de dizer "Sempre fui rica" e eu, cada vez mais encolhido só pensava "SEMPRE JULGUEI QUE FALAR DE DINHEIRO DESTA FORMA ERA FALTA DE EDUCAÇÃO" ao mesmo tempo que pedia ao DIVINO para que a mulher não reparasse nos borbotos do meu velhinho blaiser castanho. Quanto ao casaco acho que não tenho de me preocupar porque a Velha é mesmo velha e os 80 anos já hão-de lhe ter diminuido a aquidade visual.
Nisto tudo fico a pensar se a bendita Velha pensa que eu sou rico. Nunca fiz por parecê-lo. Cada vez que entro naquele camarote mentalizo-me de que tenho de falar o menos possível já que a Velha (viúva e, pelos vistos, rica - já me contou a sua vida toda!) precisa de espaço para falar. Por isso, limito-me, a maior parte daz vezes, a acenar com a cabeça e a sorrir, ou então, a meter a cabeça no tal livrito para ver se a Velha se cála e não diz tanta barbaridade.
Um dia destes, quando for eu quem vai à ópera com "os azeites" coloco-lhe a fulcral questão: "Mas você vai à ópera para dizer mal dos outros e dizer que é rica ou para ouvir música????!!!!!".
Onde é que este mundo vai parar? Espero que os ricos deste nosso país não sejam todos assim.
A velha (justiça lhe seja feita) também faz questão de repetir que, "embora seja PSD" tem grandes amigos comunistas e que os considera óptimas pessoas!lolololol Deve dizer isto para se
desculpar (não é o suficiente, infelizmente) ou então com medo que eu seja comuna (se calhar viu mesmo os borbotos no casaco.lolololol).

Este texto conta mais um absurdo quotidiano cujo análise mais profunda me faz lembrar um livro que estou a ler e que aconselho a todos vós...e à Velha. Cito Herman Hesse (2005):
«Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e isolado dos outros, se ser Siddhartha! E sobre nada do mundo sei tão pouco como sobre mim próprio, sobre Siddhartha!...» (HESSE, 2005:46).

«Por vezes, sentia no fundo do seu peito uma voz quase inaudível, que o admoestava baixinho, que se lamentava baixinho, de tal maneira que ele quase não a ouvia. Então, tomava consciência momentânea da vida estranha que levava, daquelas coisas que não passavam de um jogo, da sua boa disposição e alegria enquanto a verdadeira vida passava ao seu lado sem lhe tocar.» (HESSE, 2005:76).

No meu ponto de vista, este episódio traduz as futilidades que, muitas vezes, valorizamos, de uma forma frívola, na nossa vida. Não percamos tempo com isso, é o meu conselho.


Fiquem Bem

HESSE, Hermann - Siddhartha: um poema indiano. 10ª ed. Cruz Quebrada: Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005. ISBN 972-46-0918-9

Nota: Escrevi este texto em 2006, mas não resisti em partilhá-lo convosco aqui na Tertúlia. Entretanto já voltei a São Carlos, mas há duas ou três récitas que a velha não aparece...terá morrido? Fica a dúvida...

Já agora: BEM-VINDA DONALDA!

Um comentário:

donalda disse...

Realment os 80 anos não lhe permitem dizer tudo o que lhe vem à cabeça...mas se calhar esse é um dos grandes divertimentos dela na ópera!