domingo, 16 de setembro de 2007

Callas...30 anos.

Passados trinta anos da morte da "Divina", cumpre-me, seu fidelíssimo súbdito, recordar aquela que eu considero a maior voz de todos os tempos. Mais uma vez não se trata da melhor de todas as vozes. Tratava-se, mesmo, de um timbre feio, no fim dos seus dias, dissonante, quiçá estridente nos agudos, inconstante na qualidade ao longo do registo, de vibrato exagerado...mas, sempre, uma grande voz...a melhor à época, hoje e por muitos anos ainda.
Mas perante uma tal descrição, o que me leva a qualificá-la como "a melhor"? O que justifica o título de "Divina"? Socorro-me de um velhinho que todos conhecem, Giuseppe Verdi, que dizia preferir, para as suas ópera, vozes feias mas verdadeiras do que as mais belas mas dramaticamente inferiores. Verdi e Callas não foram contemporâneos, todavia não deixa de ser curioso tamanho paralelismo entre as palavras desse compositor maior e o soprano que Maria Callas foi (é). Porque não houve, até hoje, cantor que transferisse tanta verdade, tanta verosimilhança para o canto como o fez Maria. Torna-se tanto mais importante se atentarmos no facto da ópera ser, talvez, a mais improvável e inverosímil das manifestações dramático-teatrais: canta-se no lugar de falar.
Callas foi, então uma actriz maior, de uma simplicidade invulgares. E porque defendo para a arte o mesmo princípio das ciências que afirma ser mais válida, de entre duas opções que dão resposta à mesma questão, aquela que o fizer de um forma mais simples, reconheço o mérito desta figura, que não descurava um olhar, a posição das mãos, os passos em palco, os movimentos dos membros, da cabeça, a cenografia, os figurinos, a coordenação com os seus colegas, o número de ensaios necessários antes de cada apresentação...ou seja, defendia para si e para a arte, princípios estéticos dos quais não prescindia e que, mercê de interesses de vária ordem, a viriam a associar a títulos de diva (no mau sentido da palavra), intolerante, arrogante, entre outros adjectivos, quando, na minha opinião, ela se tratava de uma profissional sem paralelo.
Contudo, a verdade de que vos falava há pouco é tangível a um nível ainda mais profundo. Ela é observável (porque observação não se faz, somente, com os olhos) no meio que determina a inverosimilhança deste género artístico: a sua voz. As inflexões, as múltiplas tonalidades que conseguía traduzir no seu canto, as próprias deficiências e opções (à partida) erróneas quanto à técnica vocal com que interpretava, davam-lhe a capacidade camaleónica de interpretar papéis de raparigas de dezoito anos, de tuberculosas, de mães destroçadas, de ciganas incandescentes e de, numa mesma ópera emtrês actos, nos conseguir fazer sentir a evolução de uma personagem que no primeiro está feliz, no segundo contacta com a fatalidade do seu destino e no terceiro é colocada face à sua morte.
A sua capacidade faz-nos esquecer que falamos e não cantamos e que o amor também é cantado, assim como a ira, a angústia, a argúcia, a esperança, a saudade, o desespero, a perda, o desamparo, a maldade, a paixão, a coragem, a doçura, o desalento, o despeito, a perseverança...acreditem em mim quando digo que são raros os grandes cantores que possuam tamanho conjunto de matizes na sua voz...eu não conheço mais nenhum.

BRAVA CALLAS.


Gasparzinho

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